sábado, 25 de março de 2006

Vergonha de ser honesto

"Muitas são as leis num estado corruptíssimo."
(Tácito, orador romano)


SÃO PAULO - Depois de ficar presa durante 128 dias no Cadeião Pinheiros, acusada de ter roubado um pote de manteiga, a doméstica Angélica Aparecida Souza Teodoro, de 18 anos, foi libertada na manhã desta sexta-feira. Ao sair do cadeião, Angélica, emocionada, abraçou a mãe, Maria Nazaré de Souza, de 48 anos.

Na noite de quinta-feira, 22, o ministro Paulo Gallotti, da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), concedeu a liminar que determinou a libertação de Angélica.

Angélica entrou com pedido de habeas-corpus no Superior Tribunal de Justiça após ter o pedido negado pela justiça paulista. Desempregada, a doméstica tem um filho de dois anos. A defesa da doméstica argumentou que, ao tentar furtar o pote de manteiga, no valor de R$ 3,20, não houve ameaça contra o dono do estabelecimento, o que não justifica a prisão. Além disso, o fato de ela estar passando fome no momento do crime ameniza o delito.

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A notícia acima foi retirada d'O Estado de S. Paulo e, não fora pela dramaticidade que em si o caso encerra, poderia muito bem constar entre os textos de Kafka, o escritor que retratava a realidade como um absurdo.

O que essa senhora praticou - e disso qualquer advogado sabe - foi o chamado furto famélico, aquele em que o ser humano, não tendo condições econômico-financeiras, nem mais a quem apelar, seja como mendigo ou como alguém que busque alguma forma de apoio junto a amigos ou familiares, pratica furto de pequena monta, cuja subtração não levará à falência ou prejuízo maior, físico ou material, o proprietário da coisa furtada.

O furto envolveu um pote de manteiga de valor ínfimo, mas, para a vítima - sim, aquela senhora é uma vítima da estrutura da sociedade brasileira - totalmente inacessível, dada a sua condição de extrema pobreza, agravada pelo fato de estar desempregada. Mas, qual o resultado? Nada menos que 128 dias de cadeia. Junte-se a isso a morosidade cruel da Justiça paulista, que a manteve presa, quando pediu por liberdade.

Não é preciso ser um jurista para ver que aquela moça furtou por absoluta necessidade. Mas não entendeu assim o julgador paulista. Foi preciso o caso chegar ao Supremo, para ser deferida sua soltura.

Enquanto isso, nos escaninhos do Poder figurões e maiorais lotam suas contas com dinheiros escusos e, disso todos já sabemos: nada lhes acontecerá. O plenário da Câmara dos Deputados já virou palco da dança da deputada Ângela Guadagnin, que, entre o grotesco e o ridículo, oscilava sua balouçante alegria comemorando a liberação de um dos usufrutuários do mensalão.

Em artigo no Jornal de Hoje, o procurador de Justiça Luiz Lopes de Oliveira Filho, escreveu: "Ângela e sua dança, para mim, foram o epílogo da decência." A força da imagem, a fineza estilística sintetizam bem o estado de depravação a que chegamos: comemora-se com macaquices num plenário a absolvição de um tipo que participou notoriamente de um esquema de corrupção.

Rui Barbosa tinha razão: no Brasil já há quem tenha vergonha de ser honesto e comemore escancaradamente a vitória dos que vivem às custas da pobreza do povo. É realmente o epílogo da decência.

sexta-feira, 24 de março de 2006

Não, não: não está havendo nada

"Não deixe para amanhã
o que pode gozar hoje."
(Lenina, personagem de "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley)

Não, não, creio que não. Creio que está tudo bem no Brasil: não há corrupção, ninguém apoderou-se de dinheiros públicos, ninguém financiou campanhas com dinheiro de caixa dois, nenhum publicitário guardou milhões em paraísos fiscais, o presidente Lula de nada sabe; até porque é um homem que não convive com a improbidade.

Não, não. Não está havendo nada. O que se diz por aí é alucinação. Sim, é isso, é somente alucinação. Uma grandiosa, estupefaciente e penetrante alucinação, que nos faz pensar que estão acontecento coisas terríveis, como a morte do prefeito Celso Daniel e ameaça aos seus familiares, que, também paranóicos, fugiram para o exterior, tomando porém destino ignorado. Que absurdo.

Mas é tudo só impressão. É só uma sensação. Estamos todos sob um processo de auto-sugestão, que nos leva ao pessimismo e daí a suspeitarmos que estaria havendo, como diria Chico Buarque, tenebrosas transações.

Assim, fique tranqüilo. E ainda pegando uma carona nas composições de Chico Buarque, faça o seguinte: quando a polícia chegar, chame o ladrão. É que... nesse país, os ladrões resolvem tudo. Tudo. Tudo. Tudo.

PS: O caso do caseiro, com trocadilho e tudo o mais, também é fruto de alguma ação do Grande Houdini. Ninguém mandou quebrar seu sigilo bancário, não aconteceu nada. Pensando bem, será que você existe?




quinta-feira, 23 de março de 2006

O remédio da morte

“Fiado somente para maiores de 130 anos, acompanhados dos seus avores e trazendo os documento.” (Letreiro de barraca, na Redinha) Claudenício, 26 anos, pegador de caranguejo, chegou naquela noite à casa e teve de Mariana, a mulher, a notícia mais terrível que poderia receber: Valdetário, o único filho do casal, estava em febre: “Ele está pegando fogo.” Angustiado, lançou um olhar medroso para a figurinha que se debatia na rede esgarçada. O medo não era da doença em si, pois confiava que fosse só uma inflamação de garganta, e ele poderia salvar o menino comprando algum remédio - o medo era de não ter o dinheiro para o tal remédio. Sua mão tímida percorreu o pobre labirinto do bolso vazio e somente encontrou terra molhada do mangue. “E agora?” - ele virou-se para a mulher. “Sei não” - ela balbuciou. Claudenício olhou para um lado, para o outro. Via pouco, a luzinha da lamparina mal dava para mostrar a carinha esquálida do filho tremendo de febre. Um vento frio e ruim rosnava em volta do casebre ao lado das águas malcheirosas, de onde vinham nuvens de mosquitos se refestelar nos corpos magros da família. “Tem dinheiro não”, disse como se Mariana já não soubesse. Ela estendeu a mão e tocou o corpo do filho. “Vala-me minha Mãe de Deus, que o menino quase que me queima de febre.” E a mulher afundou num pranto lancinante, penetrante, cortando de sofrimento os ouvidos de Claudenício. “Mariana”, ele disse, enquanto pegava uma faca e colocava na cintura, “vou atrás do remédio.Vou lá na farmácia. E só volto com ele. Enrole o menino num pano, dê água, molhe ele e espere: eu volto.” A mulher curvou a vista e ele desapareceu no meio da lama e da noite. Correu o mais que pôde, até chegar a uma pequena farmácia. Bateu na porta, bateu de novo e outra vez, até que Seu Pereira, o dono, apareceu. Claudenício contou tudo depressa, garantiu que pagava logo que pudesse: “O senhor sabe que eu pago, porque já paguei outras vezes, não sabe?”, mas o homem não se compadeceu:"Tem remédio não. Sem dinheiro, tem remédio não." Claudenício sentiu raiva, mas sentiu principalmente humilhaçãol. Ele, um homem pobre e honrado, jamais havia deixado de pagar uma dívida. O dono da famácia era um que sabia disso. Depois, a raiva superou a humilhação e a humilhação virou coragem, uma coragem doida, vinda não se sabe de onde. Uma coragem pintada de desespero. Então, ele não contou conversa: puxou a faca e encostou no pescoço do homem: “Não tou robando. Tou pedindo emprestado e pago com dinheiro, quando puder.” Tremendo, Pereira entrou na farmácia, enrolou um pacotinho num papel e entregou a Claudenício: "Taí o remédio, pode levar. Claudenício voltou para casa. Correndo em meio à lama, o mais que podia . Chegou, entrou em casa e mandou a mulher dar uma colherada ao menino: “Uma não: dá logo duas.” Ela obedeceu, sem sequer verificar o que estava dando ao filho. O menino engoliu tudo, em meio a uma careta terrível. E logo vieram um choro mais forte, convulsões e, depois, a morte do menino, em meio ao silêncio noturno da lama. O dono da farmácia havia entregue a Claudenício um poderoso raticida. Era o que dizia o rótulo, cúmplice da escuridão e daquele desespero.

segunda-feira, 20 de março de 2006

Birimba e a égua

"Matamo três soldado,
quatro cabo e um sargento.
Cumpadre Mané Bento,
só faltava tu."
(Jackson do Pandeiro, em forró)

Trago mais um dos Causos do Edgar. São sempre histórias com personagens do povo, gente do sertão, com a marca da autenticidade nordestina, em seus dizeres e falares.

Hoje me lembrei de um rapaz chamado Roberto Moura do Nascimento, nome bonito, tão bonito que nunca poderia ser pronunciado sem constrangimento pelos seus companheiros de trabalho na Fazenda Umbuzeiro, por esse motivo muitos só o conheceram pelo não tão belo apelido de Birimba. O porquê dessa alcunha é ignorado até mesmo pelo proprietário do nome.

A Fazenda Umbuzeiro fica no município de Passa e Fica, próspera cidade do agreste potiguar vigiada pela imponente Pedra da Boca, que apesar de pertencer ao município de Araruna - PB, foi adotada e é venerada pelos passifiquenses. Além das belezas naturais, a cidade de Passa e Fica é exímia produtora de cabras presepeiros.

Marmotas e fuleragens são infindáveis por lá. Não precisa nem ser natural da cidade, basta morar lá um tempo e ter na genética uma predisposição para fuleragem que o camarada já se torna protagonista de presepadas de todo tamanho. Birimba chegou na Umbuzeiro em março de 2005, trazido por mim que na época gerenciava todas as atividades da propriedade para cuidar dos eqüinos e iniciar alguns animais na sadia atividade da vaquejada.

Eu já conhecia o trabalho do elemento pois ele morou um tempo na granja de Madílson, vulgo Neninha, motorista e amigo da nossa família. Meu único medo na época era pelo fato do rapaz ter uma relação um pouco tumultuada com cachaça, o bicho tinha um "óido" tão grande das "marvada" que não podia ver uma que já queria acabar com ela... bebendo é claro.

Fiz as devidas recomendações sobre o comportamento exigido pela empresa e sobre as punições aos atos que viessem a prejudicar o bom andamento dos trabalhos e lhe dei um voto de confiança. Pois bem: alguns meses se passaram e num sábado qualquer desses aí, haveria um bolão de vaquejada no vizinho município de Serra de São Bento, do amigo prefeito Chico de Erasmo.

Logo na quarta-feira Birimba me pediu autorização para participar do evento e levar um animal da fazenda, como a folga dele era no domingo e eu também estaria por lá pois também gosto da brincadeira, liberei o intrépido rapaz para que ele se preparasse hepática e psicológicamente.

O bolão foi um sucesso, Birimba até se classificou para disputar o prêmio em dinheiro mas não obtesse sucesso. Já era um pouco tarde e procurei o indivíduo para irmos embora, minha preocupação era que Birimba "infiasse a cara na cana", enlouquecesse em cima da Serra e resolvesse descer voando lá de cima.

Quando eu o encontrei ele ainda estava sóbrio, pelo menos estava falando, respirando e se mexendo, já eram ótimos sinais numa situação como aquela. Quando o chamei para irmos ele me alertou que precisava ficar mais um pouco para embarcar os cavalos no caminhão e "gerenciar" todo o processo. Ele estava certo, é necessário cuidado nessa hora: inocentemente, deleguei essa responsabilidade ao prestativo funcionário e desci para Umbuzeiro.

Ao acordar no domingo, tomei café, e saí para dar uma fiscalizada na fazenda, estava tudo tranquilo... esse era o grande problema... perguntas não saíam da minha cabeça: onde estará Birimba? Será que deu tudo certo na volta? Será que ele bebeu muito? Todas as respostas eu tive quando resolvi descer até os estábulos . O infiliz do Birimba tinha acabado de chegar, estava "bebo cego", e como todo bebo tem uns raciocínios inexplicáveis, ele resolver dar banho numa égua que nem tinha ido ao bolão.

Quando eu chego no local da peleja vi uma cena tão engraçada que nem tive condições de repreender o ato de irresponsabilidade de Birimba. Estavam lá, de baixo para cima, nessa ordem: o pé de Birimba (descalço), o casco da égua (em cima do pé descalço), a égua, a orelha da égua e preso nessa orelha estava Birimba, mordendo com toda força e pendurado como se fosse um brinco.

O mais engraçado de tudo é que em vez de tentar empurrar o animal (o de quatro patas) para sair de cima de seu pé, o máximo que ele conseguia fazer era dizer com a voz um pouco obstruída pela orelha da égua:
- Sua frexaaaaaaada, você me pegou aí em baixo mas eu le lasco aqui em cima!!! Tá ouvindo?

Como não estaria? O cabra com a boca socada nas "oiça" da coitada. Até hoje não sei se aquilo era um problema de manejo ou, se os dois fossem gente, uma briguinha de namorados.