sábado, 3 de junho de 2006

Cadê o drible de Mané?

Natal não consagra
nem desconsagra ninguém.”
(Luís da Câmara Cascudo)

Manoel Francisco dos Santos assim chamado na pia batismal, acabou conhecido mesmo como Mané Garrincha, o craque das pernas tortas. Não, não, jamais deveria ter sido jogador de futebol, muito menos um artista da bola.

As pernas tortas seriam o impeditivo final, sua limitação primeira, a sujeitá-lo à vida comum de nós que, admiradores do campo e do gol, somente podemos nos deliciar com as jogadas geniais, incapazes porém de repeti-las. Mas o menino pobre da cidade de Pau Grande, acabou consagrado craque e chamado de alegria do povo.

Afinal, não foi ele quem enfiou uma bola por entre as pernas veneráveis de Nílton Santos, a "enciclopédia do futebol"? Não era ele quem driblava um, driblava dois, driblava três e ainda saía correndo sozinho, deixava a bola lá atrás e levava consigo um adversário aturdido? E depois voltava, pegava a bola e fazia o gol?

Palhaços: em campo, todos os adversários de Garrincha podiam acabar fazendo papel de palhaços, tantos e desconcertantes eram seus dribles, sempre pela direita, mas com variações. E eram essas variações que faziam a diferença.

Em jogos da Seleção, quando pegava um marcador para judas, esse passava a ser chamado de “joão”, ou seja, o bobo, o tolo que ia só ser suplantado, sem conseguir deter o grande Mané. Não sei. É disso que hoje sinto falta no futebol moderno, científico, calculado, frio.

Sinto falta da emoção, da jogada poética que é um achado, um vigoroso balé, o craque vai driblando e faz gooooooooooooool!!!!! Tá certo, Garrincha, tá certo... É melhor que isso tudo fique na memória, servindo de exemplo, um museu de emoções que ajudam a inspirar os que hoje, em meio de campo, querem seguir suas pegadas. Os passos do craque serão sempre a trilha mais segura para o grito e o abraço, na alegria do gol.

Mas, no fundo, Garrincha era um simples. Não soube desfrutar do dinheiro nem da fama que ganhou. Perdeu tudo: mulher, filhas, Elza Soares, a casa, os carros, tudo, tudo, tudo...

Depois, sobrou somente uma grande e depressiva saudade dos dias de glória e os copos de cachaça que preenchiam os seus dias. E, para quem viu, uma passagem melancólica numa escola de samba do Rio, num desfile de carnaval. Mané, deprimido, cabisbaixo, quem sabe embriagado, olhava para baixo, enquando o carro alegórico que o levava seguia avenida adiante.

Foi, para mim, a imagem mais triste do jogador de futebol que mais admiro. Mas ficou, ficou Mané, a lembrança dos gols belíssimos e a sinfonia de dribles, que o fizeram magnífico e grandioso. Bravo. Bravíííííííssimo!!!!!!!!

sexta-feira, 2 de junho de 2006

Vamos prender todo mundo?

"Penso que se você sabe o que pensa,
será muito mais fácil responder à sua pergunta.
Não posso responder à sua pergunta."
(Presidente George W. Bush)

O País inteiro viu: o advogado do tal Marcola acabou saindo preso, algemado, da Comissão Parlamentar que apura o tráfico de armas. Detalhe: a prisão se deu pelo fato de que o advogado comparou os parlamentares a bandidos. Quem viu a cena pela TV sabe: ao ser pressionado pelos deputados sobre como havia aprendido rápido sobre malandragem, afirmou: "Aqui se aprende rápido."

Os deputados entenderam rapidamente que ele se referia ao parlamento e a prisão foi coisa de minutos. A questão é exatamente essa: você confia no Congresso Nacional? Você entende que a instituição é efetivamente íntegra, comprometida com os interesses do País, confiável em suas atividades internas?

Os recentíssimos casos de mensaleiros e a sua quase integral absolvição trazem à visão pública uma instituição pelo menos, digamos, sombria. Os deputados tiveram razão em mandar prender o advogado - que depois voltou ao plenário para depor, após assinar um termo em que se comprometia a responder a um processo por desacato - mas deve-se levar em consideração que deputados federais e senadores, os políticos de um modo geral, são pessoas que aparecem ao olhar nacional como pessoas cujo comportamento é questionável. E questionável a priori, o que é pior.

O advogado, ao ser algemado, ainda "aplaudiu", mesmo com as mãos atadas, o ato de sua prisão. E saiu dizendo que os deputados "queriam uma foto" para se projetar na mídia nacional, prendendo alguém por comportamento de desacato a autoridade.

Ao final das contas, o seguinte: de um lado, criminosos altamente organizados, com grande poder de fogo e de dinheiro; de outro, um parlamento cheio de defeitos, infestado de cúmplices, abarrotado de suspeitos. Vamos prender todo mundo?

"Eu vou é ser ladrão."*

Eu sou filho de uma mulher que nasceu analfabeta."
(Presidente Lula, no Dia Internacional da Mulher)

Ele seguiu avenida abaixo, pensativo. Era já o terceiro emprego que perdia no ano. Apesar de esforçado, chegar sempre no horário, na hora das demissões seu nome constava sempre na lista. Nunca compreendera o motivo de tanta má sorte. Olhou o mundo com um olhar pardo, perdido no meio da confusão do trânsito.

Havia recebido o dinheiro pelos dias que havia trabalhado: dava coisa de uns cem reais. Tudo parecia estar dando certo, mas de repente apareceu na empreiteira um sujeito que conhecia um engenheiro por lá e indicou um novo pedreiro. Pronto. Foi o suficiente para, dia seguinte, ele estar desempregado. E agora, o que dizer a Joaquina, aos cinco filhos e à sogra, lá em Felipe Camarão, zona Norte de Natal?

Caminhou meio zonzo, sem saber o que fazer. Estava assim, perdido, desde a manhã, quando havia sido despedido: sem rumo. De repente viu, lá na esquina, uma barraca de churrasquinho. Também vendiam cachaça. Seguiu direto até lá. Pediu uma dose e emborcou de um gole. Pediu duas, pediu três. A bebida desceu muriática, queimando todas as raivas e fazendo surgir novos pensamentos de ódio e revolta.

Caminhou pela calçada ruminando horrores. Sentou-se no meio-fio e uma rajada de vento polvilhada de areia envolveu seu corpo num abraço de lixa grossa. No meio desse redemoinho de vento e raiva veio voando um jornal. Já velho, de uns cinco dias.

Ele pegou o jornal e leu: bandidos haviam chacinado um policial; bandidos haviam assaltado uma mansão e levado muitas jóias; deputados envolvidos em atos de corrupção haviam sido absolvidos; ricaços escapavam da acusação de ter fortunas em paraísos fiscais.

Diante de tudo isso, decidiu: "Vou ser ladrão." De que adiantava trabalhar tanto, para, no fim do mês, ver o dinheiro faltando para pagar as contas? Levantou-se e caminhou no rumo da zona Sul da cidade. Afinal viu-se diante de uma mansão. Foi fácil saltar o muro. Atravessou o jardim. Foi fácil abrir a porta. Foi fácil entrar na casa.

Subiu ao primeiro andar. Além dele, ninguém. Aparentemente, ninguém. Mas suspeitou: se a porta estava só no trinco, haveria alguém em casa. Será que num tempo como o de hoje, com tanto ladrão por aí, uma pessoa ia deixar a casa só no trinco? Tomou cuidado.

De repente, ouviu um barulho de chuveiro. Foi cautelosamente até a suíte de onde vinha o barulho e ficou olhando, pela porta entreaberta. Somente o quarto estava iluminado. O restante da casa era envolvido em penumbra. A escuridão era sua amiga. Mesmo assim, ofegava. Fera no bote da presa. Até que esta apareceu.

Saída do banheiro uma mulher de trinta anos, muito bonita, caminhava resplandescente e nua. Ele tremeu. Aí percebeu: nem arma tinha para o assalto. A mulher caminhou até o guarda-roupa e demorou-se, de costas para ele. Voltou-se e tornou a caminhar. Ele a seguia com o olhar. E via também a riqueza, o luxo daquele quarto.

Olhava tudo aquilo e comparou com a pobreza de sua casa, a figura triste de sua Joaquina, os moveizinhos baratos, a casinha apertada e feia. A beleza da mulher rica voltou a dominar seu olhar. Ela se perfumava. O aroma espalhou-se pelo quarto e chegou até ele.

Aí, sentiu seu próprio cheiro, olhou-se e recuou, recuou, recuou. Caminhou pela semi-obscuridade, chegou até à porta, saltou o muro e escapou. Quando seus pés bateram na calçada, respirou fundo. Encolheu-se a um canto do muro e chorou em silêncio.

De repente, ouviu dois tiros vindos de dentro da casa. E um grito horrendo de mulher. E logo em seguida dois jovens saltavam o muro. E ainda deu para ele ouvir quando um deles gritava para o outro: - Cê viu, rapá, aquele otário saiu na frente, nem viu que a gente já tava dentro da casa, e a gente se fez. Dei dois tecos na madame e pegamos o colar!
* Este texto é ficcional.

Coisas do Brasil

"Nossos fracasos são, às vezes, mais frutíferos que os sucessos."
Henry Ford

Vejo nos jornais a euforia pela Seleção, a esperança do hexa, a alegria pré-fabricada; vejo nos jornais criminosos sento autorizados a aguardar julgamento em prisão domiciliar; vejo nos jornais políticos entrecruzando tramas; vejo nos jornais um emaranhado do mundo; vejo nos jornais as coisas do Brasil.

O País tem uma das piores distribuições de renda do mundo. Tem, por outro lado, um sistema de crime organizado que daqui a pouco tempo fará inveja as qualquer máfia. E nada de mais efetivo é feito para enfrentar essa situação ou seja: a má distribuição de renda e o banditismo atuando de forma empresarial.

E o que se vê nos jormais se vê também nas ruas, até pelo fato de que o jornal nasce da rua e para a rua volta. A rua não é só aquela por onde você trafega com o seu carro e vê os meninos pedindo esmolas nos sinais. A rua, a grande rua brasileira, é onipresente, especialmente nos gabinetes e salas secretas do poder.

A rua brasileira invade as decisões de poder, como o assaltante invade a loja. Os grandes crimes das ruas têm suas versões light e diet no parlamento, nos grandes encontros financeiros, nos palavrosos acordos políticos e administrativos.

Coisas do Brasil. A rua invade os meios tons das conversas decisórias e dita o tema da próxima negociata. Ah! E o hexa? Também é uma grande negociata. Milhões estão rolando nessa história de Seleção. E quando a gente gritar gol!, as registradoras estarão tilintando e alguém, alguém muito rico, um ser sem face e sem alma, brindará à tolice de milhões (de tolos) ao redor do mundo...

E aí, chegaram aqueles estranhos pacotes... E os deputados taparam o nariz.

"Creio que estamos num caminho irreversível para mais liberdade e democracia. Mas as coisas poderão mudar."
Presidente George W. Bush

Veja só o que o Jornal Nacional divulgou em sua edição de ontem: "Gabinetes de nove deputados federais receberam, pelo correio, envelopes que continham fezes. A polícia do Legislativo está investigando a origem da correspondência. Os envelopes partiram de São Paulo e de Minas Gerais. Estavam endereçados a parlamentares do PT, do PP, do PDT e do P-Sol. O material será analisado no laboratório de saúde pública do Distrito Federal."

O texto rápido e seco, típico do jornalismo de TV, mas que lamentavelmente está sendo imitado por algumas tendências do jornalismo impresso, vide Folha de S. Paulo, limitou a umas poucas palavras a informação de atos que, mesmo tendo suas impropriedades, dão uma idéia do quanto o brasileiro já não suporta mais ver o Congresso que temos.

É triste, mas é verdade: aos olhos da nação, o Congresso está mais para antro que para uma reunião de Casas Legislativas e, tanto o Senado quanto a Câmara dos Deputados, são entendidos como instâncias da suspeição e do escambo de favorecimentos imorais, do ócio e do negócio.

Por isso, eis que chegam aos deputados envelopes com material que melhor seria tivesse sido enviado a laboratórios de análises clínicas. Analisando-se, sem trocadilho, a questão, temos aí na verdade uma mensagem, uma metáfora do que pensa o povo a respeito dos deputados. Trata-se da escritura, trata-se de um discurso sujo a respeito daquilo que é sujo. Por vias transversas, uma nova visão da afirmativa bíblica "do pó, ao pó.

"É triste quando as pessoas tomam iniciativas assim: é um indício de que falta fé nas instituições e inexiste credibilidade pelo que se convencionou chamar de classe política. O conteúdo dos envelopes é um grito surdo, um urro de indignação. Pouco civilizado? Certamente. A mensagem foi grosseira? Yes, quer dizer sim. Mas ninguém, ninguém, poderá dizer que, até mesmo do ponto de vista de uma análise semiótica, os remetentes não têm razão...

Estranhei apenas que, pelo menos até hoje, nenhum jornal impresso tenha repercutido o assunto.PS: Agora, se os deputados quiserem saber quem enviou o material, é só chamar os inteligentes, educados e competentíssimos policiais do CSI Miami, que em dois tempos eles descobrem tudo...

Coisas em vão que construímos

"A vida, como a fizeres,estará
contigo em qualquer parte."
Chico Xavier

O texto abaixo é do meu livro Crônicas para Natal - as crônicas do Jornal do dia.
As estátuas têm um tempo só seu. Indivisível tempo.

Em singular movimento
estático, elas são
batalhadoras de
instantes congelados.

As estátuas, habitantes públicas de
todas as praças, homenageiam
coisas do passado. São como que
sentimentos arquitetados em bronze.
Sonoro bronze do tempo.

Cercadas pela cidade, as estátuas,
em seu conjunto que ensaia emoções,
golpeiam com a espada nua
as coisas em vão que construímos.


quarta-feira, 31 de maio de 2006

O ocaso vestido de ridículo

"Quando você elimina o impossível
o que sobra, por mais incrível
que pareça, só pode ser a verdade."
Arthur Conan Doyle


A publicidade brasileira está consolidando uma visão caricata e cruel da velhice.
Não são poucos nem raros os comerciais que apresentam os idosos, sejam homens ou mulheres, como seres existencialmente ressequidos, etariamente ridículos, comportamentalmente risíveis e humanamente desprezíveis.

Sabe-se que o discurso publicitário tem um tom autoritário, que se disfarça pelos meandros estilístico-visuais da sedução e do convencimento das mensagens. A não ser nos casos em que a campanha publicitária esteja voltada para o público da terceira idade, por exemplo vacinação contra a gripe, geralmente predomina uma mensagem em que o velho aparece sob a tipificação de literalmente um idiota.

E isso por oposição à mensagem-padrão, que é o endeusamento da juventude como uma situação a que todos devem almejar. Simples: o quê ou quem não seja jovem, saudável, audaz e belo, terá, por conseqüência inversa, a situação de velho, portanto indesejável.

Ocorre que a última faceta do discurso publicitário, seu autoritarismo, sempre mandando o publico consumir algo, senão estará out e portanto à margem da vida, traz oculta a verdadeira intenção da mensagem: em verdade não se elogia a juventude ou ou jovem; busca-se seu convencimento à aquisição de um determinado bem ou serviço. Em última instância, a utilização desse jovem como massa de consumo via ilusão de elogio à essa mesma condição de jovem.

E, caindo no que já havia dito antes, sobra ao velho o papel de ser idiota, alguém a ser estigmatizado, papel de embrulho já usado e agora descartável. Trata-se de uma forma de comunicação de massa cruel, merecedora de todo o repúdio.

Um anúncio televisivo de que me recordo agora diz respeito à marca Vitarella. No comercial, um velho é chamado a degustar um biscoito. Mas é exposto como surdo, entende tudo errado e se coloca numa situação absolutamente ridícula, ao ser perguntado sobre uma coisa e responder outra.

No Brasil não se respeita a experiência e a vivência dos idosos. Que pena: deve ser por isso que nesse país se faz tanta besteira.