Alberto Dines, Carlos Lemos, Wilson Figueiredo, Míriam Leitão e Alfredo Herkenhoff relembram grandes momentos da edição impressa do JB, um ícone do jornalismo
Clarissa Salles, Fernanda Freire, João Guilherme, Luana Corrêa e Rafaella Gil
Depois de enfrentar e vencer ameaças, empastelamentos, perseguição política e censura em momentos obscuros da história da imprensa nacional, o
Jornal do Brasil deixou as bancas no dia primeiro de setembro de 2010. Participante ativo de episódios marcantes da vida política brasileira por mais de cem anos, o
JB chegou a ser considerado o jornal mais influente do país na segunda metade do século XX. Neste período, sua redação contou com nomes como Alberto Dines, Zuenir Ventura, Carlos Lemos, Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade, Wilson Figueiredo, Ancelmo Góis, Dora Kramer, Miriam Leitão e inúmeros outros, de diferentes gerações.
Lançado no dia 9 de abril de 1891, o
Jornal do Brasil chegou ao seu período áureo (fins dos anos 1950 até a primeira metade dos 1980) marcado por uma inovadora reforma gráfica, consolidada e aprimorada durante a chamada ‘‘Era Dines’’. Localizado na capital cultural do Brasil, em uma época em que o Rio de Janeiro ditava tendências e comportamentos, o
JB influenciou não só os outros jornais, mas também uma geração de jornalistas vindos de diversas regiões do Brasil. Foi a bússola dessa geração de jornalistas, muitos dos quais hoje têm considerável prestígio nos meios de comunicação, que participaram do que muitos apontam como o único jornal impresso efetivamente nacional.
O polêmico anúncio do fim da versão impressa do
JB, feito pelo empresário Nelson Tanure, afetou a todos que tiveram suas vidas, pessoais e profissionais, marcadas pelo jornal. Alguns exigiram providências para tentar salvar a versão impressa, outros declararam estar aliviados com o fim da agonia do que restou daquele grande jornal, e há ainda os que acreditam no crescimento da versão online.
Fim de edição impressa foi notícia no arqui-rival O Globo
Entre os diversos possíveis carrascos do jornal figuram a perseguição política sofrida durante o regime militar pós-64, em decorrência da ‘‘resistência criativa’’ ao AI-5 e da oposição aos generais-presidentes, quando o governo, de um lado, censurava veículos de comunicação e, de outro, era o maior anunciante do país (muitas vezes favorecendo a concorrência); a transferência da sede do jornal da Avenida Rio Branco para a Avenida Brasil, em um prédio que seguia projeto de Henrique Mindlin, imponente, premiado internacionalmente e demasiadamente caro; má gestão, entre diversos outros fatores.
Alfredo Herkenhoff, autor do livro
Jornal do Brasil: Memórias de um Secretário, acredita em um conjunto de causas que levaram ao fim do jornal, entre as quais cita a concorrência da televisão e “um certo mau humor de Brasília a partir de 68”. Entretanto, Herkenhoff diz que o “anúncio de morte” não o surpreendeu: “O jornal já tinha começado a morrer muito tempo antes, ele só vinha definhando e agora acabou de ser jornal impresso, tentando sobreviver como digital, mas não sei se terá futuro nisso”.
Miriam Leitão, que trabalhou como editora de Economia no
JB antes de ir para o concorrente
O Globo, concorda: “Ele deixou de ser
JB, foi saindo devagar. Primeiro perdeu as características, a influência, e depois fechou no impresso, tentando transformar isso numa história de migração para o online. Eu já tinha parado de lê-lo há muito tempo, porque não precisava mais, deixou de ser fundamental muito antes de morrer. E um jornal morre quando deixa de ser fundamental”.
E o que fez o
Jornal do Brasil fundamental foi, segundo Wilson Figueiredo, “o bom humor no tratamento de problemas, a objetividade e a segurança da informação. Não havia sensacionalismo, mas uma procura pela qualidade da informação”. Miriam cita a liberdade de criação: “Trabalhei entre 1985 e 1990, anos intensos para o Brasil e para a economia. Em 90, por exemplo, a inflação chegou a 84% em um único mês, então tivemos que inventar um jornalismo – e o
JB deixava a gente inventar qualquer coisa. O jornalismo econômico naquele momento era utilidade pública”.
Carlos Lemos, ex-chefe de reportagem do
JB nas décadas de 60 e 70, acrescenta o sentimento de identificação e pertencimento entre os jornalistas: “Era um espírito de clã, éramos tão cientes da qualidade do produto que quem não trabalhasse no
JB não era jornalista”, brinca. Alberto Dines, ex-diretor de Redação e um dos responsáveis por consolidar as mudanças editoriais e gráficas que, nos anos 1960, deram prestígio inigualável ao jornal, relembra o clima familiar da redação, onde era frequente ver crianças, levados pelos pais jornalistas especialmente aos sábados. Duas dessas crianças eram os filhos de Miriam: “Eles iam para a pesquisa ler quadrinhos e a primeira vez que usaram um computador foi dentro da redação. Os dois viraram jornalistas, um final inevitável”, conta a jornalista.
Dines atribui o espírito da redação ao
JB e não aos jornalistas em si. “Criou-se um espírito único. As pessoas podiam sair e, quando voltavam já não encontravam todos, mas tinha alguma coisa impregnada. O
JB não foi o jornal de um período, por pelo menos 40 anos passou por diversos comandos, mas ninguém tocou em nada, era uma coisa sagrada. O
Jornal do Brasil criou um espírito corporativo, as pessoas confraternizavam, qualquer oportunidade era motivo para festinha. É esse espírito que fez o jornal que acabou, mas os filhos continuam. Essa choradeira positiva ela é reflexo de um sentimento coletivo de perda.”
Perda que Wilson Figueiredo descreve como “uma parte minha que já morreu” e faz Herkenhoff e Miriam relembrarem a infância. “A importância do
Jornal do Brasil para mim começou na infância, meu pai lá no interior do Espírito Santo passou a assinar o
JB. Morei dois anos na Europa decidido a fazer comunicação e o
JB e o
Correio da Manhã (
diário que fechou as portas após bater de frente com a ditadura militar) eram as minhas referências emocionais da infância. Foi muito doloroso assistir a esse processo de decadência. O
JB foi acabando todo dia um pouquinho nos vinte anos que eu trabalhei lá e foi muito triste ficar impotente diante daquilo”, diz ele. Natural de Caratinga (MG), Miriam acrescenta: “Eu morava no interior de Minas e quando alguém vinha ao Rio eu pedia para trazer o
JB de todos os dias, mesmo que estivesse velho. E eu lia com grande prazer, porque a matéria era muito mais completa, o caderno B era inigualável e as matérias de comportamento eram modernas, atrevidas”.
Além de moderno e atrevido, o Caderno B é descrito por Wilson Figueiredo como agradável e inovador. “Era agradável, provavelmente não pela literatura, mas pelo sentido informativo e cultural que o
Jornal do Brasil adotou, transformando tudo. Entrevista não era formal, era uma entrevista importante que pegava o sujeito na hora certa, os repórteres aguçavam e tinham bem o sentido agudo do momento, do momento cultural… O jornal fazia tudo de maneira criativa e na oportunidade ideal, na hora certa”.
Alberto Dines é citado pelos colegas como a grande referência no
JB. “O
JB realmente marcante na minha geração é o
JB do Dines. A reforma começou antes, mas ele fez uma parte grande dela e o consolidou como um jornal à frente do seu tempo, que os outros copiavam”, diz Miriam. Carlos Lemos concorda: “O período áureo foi comandado pelo Dines, que era editor-chefe, seguido por mim e mais três abaixo, Luiz Orlando Carneiro – que era o homem do futuro –, Sérgio Noronha, chefe do copidesque, e José Silveira, editor e diagramador. Esse quinteto foi uma das coisas mais sensacionais que se conseguiu juntar na imprensa brasileira”
Primeira página histórica: JB dribla censura ao noticiar AI-5
Miriam frisa a quantidade de grandes nomes que passaram pela redação: “Muita inteligência passou por lá. O Zuenir Ventura, por exemplo, parava o trabalho dele para reler um texto e te ajudar a melhorar, descobrir um talento que estava sufocado. E Drummond, Antonio Callado, Ruy Barbosa ter sido editor-chefe, Rodolfo Dantas, um dos fundadores…
JB é um mito, um emblema na história do Jornalismo brasileiro”.
Dines, no entanto, lembra que não se preocupava em dar um nome ao seu cargo: “Eu só fazia questão de alguma coisa ligada a editor porque eu era responsável pelo jornal, pela feitura do noticiário, não pela opinião do jornal, porque isso era competência dos donos. Então eu queria alguma coisa que fosse ligada a redação, e fiquei lá por quase 12 anos”. Para ele, um dos trunfos do
JB era o treinamento de jornalistas dentro da própria redação: “O departamento de pesquisas era uma espécie de escola, e esse é o segredo de uma organização jornalística: ser uma instituição de aprendizado permanente, porque senão você fica patinando na mesma coisa e não vai pra frente”.
Quanto à possibilidade de renascimento do jornal, Dines diz que mesmo que o jornal fosse comprado por um milionário – ele cita Eike Batista, que dias depois desmentiria qualquer interesse em investimentos em mídia –, de nada adiantaria se a cidade não estivesse pronta para produzir: “O jornal era o reflexo do Rio de Janeiro, não de um grupo de pessoas. Era o reflexo de uma comunidade inteligente e que queria fazer um produto inteligente. O
JB era o fruto da inteligência do Rio, independendo de quem escrevia e informava. É como um casamento, você não fala assim:
Ah, resolvi casar! Não, precisa haver algo em comum”. Assim, a relação se torna uma via de mão dupla, onde o leitor tem papel de identificação com o jornal e o jornal tem o dever de respeitar o leitor, mantendo o que ele gosta e retirando o que não agrada.
Miriam Leitão descreve a redação do
Jornal do Brasil como um ambiente encantador e cita Joaquim Ferreira dos Santos, que contava a história do ascensorista que, ao chegar ao andar da redação, exclamava: “Parque de diversões!”. “A gente trabalhava muito, duramente, mas também se divertia”, diz Miriam. E Dines completa: “Atualmente é uma coisa inanimada, totalmente diferente do que é o jornal: vida, a vida da comunidade”.
Indagado sobre um possível fim do jornalismo impresso em geral, Carlos Lemos é direto: “O jornal vai acabar, vão acabar todos. Hoje vivemos o reinado da imagem, vai acabar tudo aqui (
mostra um telefone celular)”. A tendência segundo Miriam Leitão é, de fato, essa: “Os jornais vão migrar para o online, ou farão as duas coisas ao mesmo tempo. Essa é a tendência, os jornais serão multiplataforma mesmo, e já o são”. Dines vê com incerteza essa migração, já que, para ele, uma redação dá vida ao jornal: “Como é que vai fazer isso na internet? Por enquanto, a internet é uma coisa inanimada”, diz.
Já Wilson Figueiredo se mostra preocupado com a documentação do online: “A importância de um jornal online é o presente e eu nunca vi a durabilidade de uma matéria eletrônica, que com muita facilidade se perde, você não encontra. A documentação é importante para o historiador, porque o que sobra de cada época é mínimo, é o essencial: a idéia que se faz de uma época é o que sobrou dela no que está escrito. É importante ter material para analisar”.
Todos deixam transparecer grande pesar e nostalgia ao falar do fim deste jornal que não apenas acompanhou e noticiou, mas também fez parte da história do país – principalmente na cidade de sua sede, onde agora apenas um grande jornal fala para o público órfão do
JB. “É uma tragédia”, lamenta Miriam Leitão, “a competição entre
O Globo e
o JB era muito viva, a gente queria fazer o melhor jornal. Era uma saudável disputa, porque queríamos fazer o melhor para agradar ao leitor e isso nos estimulava”.
O futuro do jornalismo impresso é, de fato, incerto, e não se pode afirmar ainda se haverá um fim, já que propostas de novos formatos podem surgir. Sendo assim, cada jornal vai tentando sobreviver em meio à incomparável agilidade de informações que se obtém online. Porém, o que revolta aqueles que viram o
Jornal do Brasil definhar é o processo de desligamento do que este representava, sua gestão nas mãos de quem “não gostava do produto”, segundo Dines. “Um industrial que fabrica salsicha tem que gostar da sua salsicha, do seu biscoito, do automóvel que ele faz, se esse industrial ou artesão não gosta daquilo que ele faz, ele não prospera”, compara.
Miriam Leitão segue o mesmo pensamento: “O Tanure não quer fazer jornal, ele não entende de jornal. Um cara que compra empresas quebradas para tentar ganhar mais algum não vai entender o espírito do
JB, não tem a menor chance”. Carlos Lemos também atribui o fim à “megalomania e generosidade do Dr.
Nascimento Brito” (Manoel Francisco do Nascimento Brito), dono do
Jornal do Brasil e responsável pela suntuosa sede da Avenida Brasil. Muitos esquecem de listar os Nascimento Brito entre os responsáveis pela derrocada do jornal, mas é fato que a marca
JB acabou sendo arrendada ao empresário Nelson Tanure por 50 anos devido às dificuldades enfrentadas na época da gestão da família.
Ouça a íntegra da entrevista de Carlos Lemos e conheça histórias como a do drible de Pelé à restrição de fotos de negros na primeira página do JB
Ousado, mítico, mágico, excêntrico, revolucionário, inovador, formador de gerações, influência para jornais e jornalistas do país inteiro. O
Jornal do Brasil deixou as bancas, mas não deixou os corações daqueles que o escreveram, nos quais deixou sua marca. Marca de um jornal que, provavelmente, nunca mais será escrito. E toda vez que esses grandes nomes passarem pela Avenida Brasil 500, o sentimento será o mesmo: emoção.