sábado, 17 de março de 2012


A persistirem os sintomas, procure um médico...

Na televisão são muito comuns anúncios de medicamentos, seguidos da advertência que dá título a este artigo. No Brasil, a TV assumiu um papel de grande relevo especialmente por dois motivos: primeiro, o televisor é um bem de consumo durável, ao contrário do jornal que, após lido o que interessa, não terá mais qualquer utilidade; segundo, porque a maioria dos brasileiros não tem dinheiro para outra forma de lazer que não seja assistir televisão.
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 Isso atribuiu ao veículo TV, em nosso país, um grande poder uma vez que a televisão, com seu discurso de apelo direto, assumiu o papel de instituição prescritiva, ou seja: de alguma forma determina formas de comportamento, dita moda, induz compreensões de mundo.

Resultado: a publicidade médica tomou a televisão como parceira e a transformou em consultório. Mais resultado: celebridades como Pelé passam a recomendar esse ou aquele produto de uso medicinal, pelo simples fato de que estão associados à sua figura. Pelé anunciava um composto chamado Vitasay, como se fora Vitasay o elemento responsável por sua excelente forma física, o elemento potente que havia garantido a seus músculos a capacidade para chegar onde chegou. Não era verdade. Pelé tinha talento e exercitou-se muito para se manter em forma.

Atores e atrizes mais ou menos famosos também exercitam esse tipo de medicina televisiva. E até anônimos também fazem esses anúncios. É que o poder televisivo foi de tal forma construído, que a publicidade médica, mesmo feita por anônimos, passa por serviço; aquele remédio não está sendo "vendido", você está sendo "informado" de que comprando um determinado comprimido ou xarope ou qualquer-coisa-por-aí, estará tomando um bom medicamento. 

É aí que entra, muitas vezes, a advertência, na verdade uma matreirice para livrar o fabricante de qualquer responsabilidade: "A persistirem os sintomas procure um médico". Espere aí: você é induzido a tomar uma beberagem qualquer para se curar, depois a tal beberagem não faz efeito e somente então você deve ir ao médico? Há aí algo que varia entre o insano, o surrealista e o perverso.

O insano é você ser induzido ao consumo de uma droga por alguém não qualificado; o surrealista é a forma com que a dramaturgia publicitária envolve numa atmosfera quase que de sonho a promessa de cura; o perverso é que muitas vezes a pessoa vai mesmo comprar aquilo simplesmente porque não tem plano de saúde, o sistema público de saúde não funciona e o coitado não tem dinheiro para uma consulta particular.

Estranho país esse, onde medicina é vendida pela TV. Não foi proibido anúncio de cigarro e de bebidas alcoólicas fortes? Por que também não se proíbe essa medicina televisiva?

Concluindo: não é porque Xuxa é apresentada como rainha dos baixinhos que tenha qualquer autoridade para falar a respeito do bem estar e qualidade de vida das crianças. Xuxa transformou-se numa marca, ela própria é um produto, um produto que gera outros produtos. Não tem qualquer autoridade ou autorização para dizer o que é bom ou não para as crianças. Ela apenas induz meninas a comprar coisinhas e mais coisinhas com o dinheirinho dos papais e mamães. Instrutivo, não?
E se você tem mania de ver e acreditar em tudo que se passa na televisão, a persistirem esses sintomas procure um médico...

quarta-feira, 14 de março de 2012

Caçuá do tempo

--- Walter Medeiros

Vivi lá pelo sertão,
No cheiro do aveloz,
Pelo espinho do cardeiro,
Vendo a boneca do milho
E a Rosinha do amor.

Nada mais belo que as pedras,
Areia, poeira seca,
O entrançado das cercas,
O colorido do mato
E os bichos fazendo som.

Na sombra do umbuzeiro
Ouvi muitos passarinhos,
Vi um luar tão branquinho
Inda menino buchudo
Levava a vida a sonhar.

Agora o sonho é saudade
Do tempo que já se foi
Dentro de um carro de boi
Trancado num caçuá
Cheio de felicidade.

Caatinga adentro encontrava
Pelas plantas do destino
A mais bela flor vermelha
E vasos com mel de abelha;
Como meu mundo cheirava!

Mas ninguém faz o que quer
Fui parar noutros lugares
E aqueles belos luares
Agora apertam meu peito
Mas fazem a minha fé.

Acabou de chegar uma chuva de sertão: a bença, minha vozinha

Acabou de chegar uma chuva de sertão. Chuva grande, poderosa. Chuva do tempo velho, quando o sertão era terra de bicho brabo: onça esturrando alto no meio da noite densa. Chuva antiga, muito antiga, tempo em que as mulheres da casa usavam cabelo alto, arrumado num totó. Chuva boa, criadeira, plantadeira de chão, trabalhadeira da terra. De enxada e brotação. 
Arte do livro Asa Branca feita com nanquim e guache - Maurício Pereira

Não sei porquê, mas essa chuva me trouxe essa lembrança de tempo que não vivi. Dá-me a impressão, essa chuva, de uma alegre chegada de avós que moravam nos escondidos da serra, apeando na capital. E de lá me contando muito do trovão explodindo a noite, o corisco vigoroso fatiando o ar na foice, na foice da luz do céu. 

E na noite a cruviana, o frio largo do sertão, faz o homem se arranchar bem firme em cima da sela, puxar a veste de couro e esporear o cavalo em direção da morada. 

Sua bença, minha chuva, chuva velha que me manda, menino que inda sou, sair do meio do paito mode num pegar um difruço. Sua bença, chuva antiga. Sua bença, chuva antiga.

domingo, 11 de março de 2012

Louvemos os ladrões

Louvemos os ladrões. São raça antiga, universais sujeitos. Louvemos os ladrões. 
Guto Cassiano

Como os bons médicos, os bons engenheiros, os bons pedreiros, os advogados plenos, há também os bons ladrões. Aqueles que se destacam pela agilidade mental, pelos gestos perfeitos, pelo conhecimento que têm, louvemos os ladrões. Mais justamente aqueles que, sob o título genérico de políticos, roubam à tripa forra e nada lhes acontece. 


São injustos, cruéis, perversos, malsinados; mas são ladrões, acima de tudo ladrões. São encontradiços desde o governo federal aos governos estaduais, câmara dos deputados, assembleias legislativas, vereadores e gabinetes os mais secretos. Louvemos os ladrões.


São astutos, ligeiros, não têm alma. São ladinos, persistentes, afilados. Astuciosos, fazem leis e essas leis jamais os punem. Louvemos os ladrões, esses sabidos.

 Roncam alto, como roncam. Mas estão sempre acordados nos acordos que perpetram. São ladrões, são miseráveis; que nos roubam, nos assaltam com palavras e com gestos. E assim, fiquemos pasmos, perplexos, cansados. Louvemos os ladrões, pois, afinal, como ladrões, apesar de tudo ainda não nos roubaram a última coisa, o grito que devemos dar: vocês são ladrões e sabem disso. E sabem que nós sabemos que vocês sabem que nós sabemos que vocês são ladrões.