Vamos subir quatro lances de escada e estamos num jornal.
PáginaUM
Jornal só faz rosnar; quem
morde mesmo é povo
Um exemplar da edição do dia,
22 de setembro de 1959, se espalha sobre a mesa de diagramação; está meio
amassado e cumpre a sina cotidiana dos jornais: virar banalidade emudecida em
papel. Esse negócio de jornal é um ciclo de 24 horas. Manchete tem de renascer
todo dia. Só é grito de manhã; ao meio dia está rouca; de noite já se calou. É
por isso, por causa desse grito, que trabalho em jornal: para fazer acontecer
como notícia o que no mundo se deu como fato. Jornalista tem que vibrar. Ou
isso ou vá trabalhar num cartório.
São mais de nove da noite. A
redação está quieta. Eu e um diagramador somos os únicos ainda por lá,
começando a editar a primeira página. Hoje o fechamento atrasou por causa da
apuração de uma matéria-bomba; assunto delicado, envolvendo figurão. Um
escândalo que a alta sociedade vinha escondendo. Mas o jornal descobriu e amanhã
a manchete estará na boca de todos:
Senador estupra empregada em casa bem na frente da esposa
Político arrastou brutalmente a madame para o quarto da doméstica; aos
berros queria que ela visse tudo
Intimamente eu já ouvia o estampido
da manchete, sua explosão no dia seguinte. O grito de tinta escancarado em tipagem
corpo 72. Mas enquanto aquela voz de papel não buscava o olhar geral, a redação
era silêncio. Silêncio somente quebrado pelo tec-tec-tec da minha máquina,
batucando aquela manchete. Fora isso, tudo parado. As outras máquinas de
escrever, como pesados caranguejos de uma pata só, estavam caladas em seus
corpos de metal. O resto era o de sempre: os cestos, cheios de laudas
amassadas; estirados em tiras de papel, os telegramas das agências de notícia pareciam
o tapete de um desatinado; havia jornais espalhados sobre todos os birôs. O
rádio, sintonizado em algum noticiário nacional, dizia que tinha acontecido não-sei-o-quê-não-sei-aonde.
Cinzeiros empanturrados, garrafa de café e um maço de cigarros ao alcance da
minha mão completavam o ambiente. Sempre que revivia aquela cena, ou seja,
todas as noites, eu tinha a impressão de que ali tinha havido um confusão, uma
luta, algum tipo de guerra ou pelo menos uma escaramuça de alucinados.
Olhando o título que acabara de
bater, algo me veio à mente. Uma coisa que me desaponta em jornal: o “tratamento
especial”. Isso quer dizer o seguinte: aos inimigos ou desconhecidos o peso da
manchete; aos de casa “um pouco de
cuidado”. O exemplo estava bem ali, na minha cara: se o senador tivera a chicotada
da manchete, um vereador – amigo da Direção – recebia tratamento diferenciado. Seguinte:
ele tinha puxado um bruta baseado e rebatido a coisa com uma boas doses de
uísque. Depois partiu para a Câmara e lá aprontou a maior confusão. O repórter
autor da matéria tinha sugerido o seguinte título:
Muito
doido
Vereador arrocha um tarugo de maconha,
puxa fumo pesado e quebra pau no plenário
Por ordem da Direção o título
ficou assim:
Vereador faz confusão
no plenário, mas é contido
por seus colegas
A chamada foi editada no canto
inferior esquerdo da primeira página. O
texto era fiel ao fato, contava tudo; mas, editorialmente, estava minimizado; notícia
murcha dependendo de onde esteja. Todo dono de jornal sabe disso. Continuei
trabalhando. Às nove e quinze trinou um telefonema pontual. Como se fosse um
pequeno rito, toda noite um louco maravilhoso perpetrava pequena insanidade que
muito me agradava: fazia sua ligação costumeira para “saber se tinham matado
alguma autoridade”. Era incisivo.
– Mataram alguém de alto cargo?
Mataram alguém? Se mataram, me adiante.
– Não, não. Hoje não mataram
nenhuma autoridade.
– Graças a Deus. É muito bom
quando não matam uma autoridade, sabia? É sempre bom, não é? Não é?
– Sim, sim, é sempre bom quando
não matam uma autoridade.
– Muito obrigado.
– De nada.
Ele desligava; mas, antes, me
tranquilizava: amanhã, no mesmo horário, voltaria para saber se tinham matado
uma autoridade: “Preciso estar informado a respeito dos acontecimentos graves”.
“Muito obrigado”, eu dizia. Isso já acontecia há anos. E reforçava em mim uma
convicção: todo jornal é um ambiente de fragores. Ou pelo menos eram. Aquele
dia, aquele dia mesmo, tinha sido marcado por uma peleja ou algo que o valha.
Veja só: exatamente às seis da tarde um sujeito enlouquecido de medo tinha invadido
a redação. Fugia para escapar de pequena multidão que queria matá-lo. Um
segurança impediu o linchamento repelindo a golpes de cassetete os atacantes
irados. Depois, quando os agressores se dispersaram, o homem contou a sua
história: tinha se envolvido numa briga de família. Tinha discutido com o pai e
havia surrado duramente o velho. Indignados, os vizinhos se meteram e o tempo
ferveu. Ele levou chutes e socos, apanhou muito. O alarido se alastrou e logo
toda a rua se reuniu para malhar aquele judas aos gritos de “mata! mata!” Ele
conseguiu fugir, mas trouxe a malta furiosa em seu encalço. Ao passar em frente
ao jornal teve a insensata ideia de socorrer-se da redação. “É que jornal sempre
defende quem está em desvantagem, não é? E como eu estava apanhando, quer
dizer, estava em desvantagem, vim me esconder aqui”, justificou-me depois da
confusão[1]. Expliquei
que as coisas não funcionam bem assim: jornal não se mete em briga de família: escancara
as brigas de família. É bem diferente, salientei. E lhe disse: