sábado, 20 de fevereiro de 2016

Delcídio do Amaral: os escombros de um homem




Cara a cara 
com a dor

O grito do olhar daquele que se perdeu. Delcídio do Amaral. No flagrante de Evaristo Sá para a AFP a prova de que em jornalismo nem sempre valem as leis, determinações, normas ou regências que a ordem estético-informativa dita. Ou seja: que a imagem facial deve identificar por inteiro aquele que é fotografado.

Não: em jornalismo às vezes vale mais a inesperada, implausível, fantasmagórica, louca ou espantosa visão do que está interno ao sujeito fotografado. A face falando ao ser vista. A dor tem cara e essência visíveis.
E o que se vê na foto é exatamente essa visibilidade. O interior de um homem alquebrado, encolhido, torto. O olhar diz tudo. 

A circunstância – algo sombria, desconexa, troncha – completa a composição da imagem: a face e sua faceta. A face – decadente, sofrida, decrépita – revela alguém que busca se esconder no banco traseiro de um carro como se ali fora a gruta de um acossado.

Um crucifixo de aparência tosca faz a ilação entre o homem e sua remição. E alude àquele medo tão humano e tão antigo do Homem: o medo de enfrentar o mundo. E assim o humano busca o divino, o salvador cósmico e bondoso. Bondoso até com os perpetradores.

A foto é poderosa e precisa. E, essa sim, vale mais que mil palavras.




quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

O voto como sucumbência



E aí a moça do TRE me perguntou:
“O senhor sabe assinar?”

https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=20204364#editor/target=post;postID=638981929439
E ali estava eu: cumprindo com o dever de fazer meu registro biométrico eleitoral, curvando-me à obrigação de votar. Eu tinha vindo contra a vontade: voto deveria ser um direito; não uma obrigação, uma servidão, uma espécie de débito com a autoproclamada Justiça Eleitoral.  

Mas, afinal e lamentavelmente eu estava lá: em meio a pessoas calorentas, afogueadas, quase desesperadas para registrar numa maquininha reluzente suas impressões digitais. 

Era grande o falariço: “Essa fila não anda?”, “já começaram a atender?”, “aquele homem está passando na frente das pessoas?”, era o que mais se ouvia. Respirei fundo. Mais que isso: respirei pausadamente, tentei desligar-me daquela pobre, inútil e passageira indignação e concentrei-me na espera.
E o fiz da seguinte maneira: fiquei sentado como se a espera não existisse; ciente de que tudo ali era passageiro e breve, uma espécie de infrutífera tardança. Calma, rapaz; calma. 

Fiquei assim: desligado, olhar perdido, pensamentos amorfos. Não valia a pena mesmo a mais mínima irritação, a mais ínfima raiva. Algum tempo depois fui chamado. Pensei comigo: “Viu como foi bom? Nem deu para notar a demora.”
Dirigi-me a um guichê. A moça do atendimento era simpática, atenciosa. Desculpou-se por não estar usando luvas plásticas para manusear meus dedos durante a coleta das impressões digitais: “Eu devia estar usando. Mas minhas unhas são grandes, né? E eu tenho alergia a essas luvas...”

Respondi que tinha problema não. E ela perguntou: “O senhor ainda vota?”
Sou um velho a macambúzio lobisomem. Tão macambúzio que certamente a minha presença chamara a atenção da jovem. E, daí a supor que seria eu  alguém livre da canga do voto fora um passo. Perfeitamente compreensível.
“Sim, ainda voto”, lamentei.

Então, ela pegou minha mão direita e anunciou: “Vamos ver se o senhor ainda tem impressões digitais.”

Ato contínuo pegou a mão direita, pressionou meus dedos um a um sobre a maquininha; fez o mesmo com a mão esquerda, e constatou-se: eu tinha! Eu tinha impressões digitais! Já pensou? Meus surrados dedos ainda preservavam o condão de deixar marcas no mundo. 

Ela disse: “Ótimo!”
E eu: “Ótimo!”

Depois, a foto: “Eu vou ajeitar a máquina”, informou. “Fique pronto, bem ajustado que eu aviso quando vou tirar a foto.”

Fiquei parado como um prisioneiro, daqueles que vão ser identificados para a ficha policial. Durou pouco tempo, mas deu a impressão de terem se passado uns sete séculos. Mas então ela, pá!, fez a foto. 

E veio a pergunta final: peremptória, augusta, definitiva: “O senhor sabe assinar?” – o leitor, pessoa bondosa, que talvez acompanhe este coranto eletrônico com alguma regularidade, sabe que sei ler e escrever. Com dificuldade, mas conheço tais pobres e humildes ofícios.  

Mas a moça do TRE, que nunca havia me visto, não tinha qualquer razão para supor que sei redigir meu nome. 

Felicíssimo por saber ler e escrever festejei: “Sim, sei assinar. Com alguma dificuldade, mas sei, sim, assinar."

Ela deu-me uma dessas tábuas eletrônicas, semelhante a um tablet. Mandou que assinasse meu nome. E então no quadro luminoso registrei-me em letras e horrendos garranchos perante a Justiça Eleitoral. E estava tudo terminado. Alívio.
“Pronto! Estou livre!”, gritei dentro de mim. 

Ela sorriu. Eu agradeci, e não sei de onde me veio a extravagante vontade de saber: “Será que dava para eu assinar de novo? Só para melhorar a letra, sabe?”
Ela respondeu: solícita, imperial, sorridente e definitiva: “Não. Se assinar de novo vai ficar muito pior...”